quarta-feira, 24 de março de 2010

UMA DOCE HISTÓRIA DO BRASIL


De onde surgiu uma das mais fortes facetas de nossa miscigenação no quesito gastronomia?
Dizem os historiadores que o açúcar, obtido após a evaporação do caldo da cana, foi descoberto na Índia, lá pelo século III. Mas teriam sido os árabes seus introdutores em grande escala na alimentação, criando amêndoas e nozes açucaradas, além dos doces de figo e de laranja. Já no século XV, ao conquistar a Península Ibérica, os mesmos árabes incluíram a cana-de-açúcar nas mudas que passariam a produzir as frutas utilizadas nos doces futuros. A partir daí, de Portugal e Espanha, a cana-de-açúcar desembarca na América pelas mão de nossos desbravadores. E pronto, estava assim sacramentada a invasão mais doce da história brasileira, uma cultura que se perpetuaria pelo séculos seguintes.
Comprovadamente, muitos dos doces hoje considerados brasileiros têm origem portuguesa. É saborosa, por exemplo, a história de que, nos conventos Portugueses, era comum o uso de claras de ovos para o trabalho de engoma dos hábitos das freiras. Então o que fazer com a gigantesca sobra de gemas? Criativas, as religiosas começaram a fazer quindim, bom-bocado, pudim, papo-deanjo e manjar com essa abençoada abundância de ingredientes. Passadas as gerações, cá estamos nos fartando dessas mesmas iguarias e muitos se achando brasileiros pioneiros na doce arte da confeitaria.

Sem mesmo falarmos de outras invasões europeias, que viriam a contribuir com o enriquecimento de nossa confeitaria Brasileira, recuperamos a comunhão da tradição lusitana com as frutas brasileiras. Um elo fundamental surge nessa linha de produção: as quituteiras negras, que das senzalas emergiram para as cozinhas das sinhás, trazendo consigo a farinha de mandioca, o fubá, a abóbora e o cará para a composição das iguarias.
Falo de uma região geográfica situada, principalmente, em Pernambuco, Alagoas e interior de São Paulo. Sabemos que as frutas são base de sobremesas há séculos. Daí, imagina-se o quanto os portugueses, que misturavam mel às frutas antes do uso comum do açúcar, se deslumbraram com as possibilidades de nossas polpas, generosas em todo canto de um país recém-descoberto. São ambrosias, doces de abóbora, banana com laranja, cocada, merengue, tapioca e tantas outras preciosidades. Ainda nos tempos coloniais, a cajuada e a goiabada ganharam ares de nobreza, já considerados os dois grandes expoentes da casa-grande. Mas foram tempos também em que os aromas de bananas assadas ou fritas, envoltas em canela, invadiam as propriedades, assim como o chamado mel de engenho era fundido com nossa farinha de mandioca ou macaxeira.
Nos engenhos do interior de Pernambuco, Paraíba, Alagoas e Maranhão, assim como nos sobrados de Recife, São Luiz e Maceió, as cozinheiras negras foram verdadeiras alquimistas na formação de uma cozinha regional. Sem falarmos na Baia, estado no qual a tradição branca mal se percebe hoje nos guisados salgados, vencida que foi pelo calor arrebatador dos condimentos africanos que lhe dera as cozinheiras negras.
Comprovado o prestígio do mel de engenho em meio a aliados como farinha, cará ou fruta-pão, o tradicional arroz-doce ganha contornos nacionais no arroz com leite-de-coco. Ao mesmo tempo, a tapioca surgia soberana por entre mesas de chá patriarcais: sozinha ou na companhia da pamonha, do beiju, do cuscuz e da cocada. Situa-se também o nascimento do pé-de-moleque (com castanhas de caju), além da canjica e de bolas à base de milho.
Mas se a maioria das origens são identificadas, sobre o bolo Souza Leão, que até hoje reina em terras pernambucanas, têm-se notícias de inúmeras receitas que se arvoram em autênticas.
São também de Portugal, os primórdios dos bolos de noivas e aquelas pirâmides de açúcar encravadas no centro das mesas mais nobres. Assim como a arte dos enfeites, surge a criação de letras e de desenhos, à base de canela, bordados nas toalhas e nos guardanapos, como também opções de formatos de caixas, ornamentos e papéis recortados. Cabe lembrar a tradição de um Brasil Colonial, como em Portugal, era comum, em procissões, fiéis conduzirem tabuleiros de doces, oferecidos de forma gratuita a indivíduos que representavam figuras bíblicas.
Passado o tempo, surge um dos mais encantadores aliados da culinária e, por que não dizer, dos hábitos da civilização moderna: o gelo. A partir daí, as frutas brasileiras, presentes em doces, geleias e pudins, servidos ainda quentes, incorporaram novos contornos de sabor e de comportamento, e se transformaram em sorvetes. Tratados como cremes para os dias de calor, agradavam tanto à visão quanto ao paladar. Rompendo as fronteiras das fazendas e dos engenhos, surgiram como mote para as primeiras confeitarias das grandes cidade do Brasil. A iguaria tornou-se quase marco do desaparecimento das clássicas e fumegantes sobremesas patriarcais e do descrédito dos saraus em torno de chás ferventes, com queijo do sertão e pão torrado.
Os anos se sucedem e a chegada de imigrantes de toda a Europa espalha as tradições confeiteiras inglesa, francesa e alemã, incrementando, alterando e adequando as novas feições abrasileiradas de seus dotes adocicados.
Guardamos lembranças, imagens e aromas. Quem não se perde em devaneios ao lambuzar os dedos após um naco de goiabada caseira e se vê o mais feliz dos reis ao morder sem timidez um sonho recheado com o melhor dos cremes, ou se enche de orgulho após uma saraivada de doces à base de frutas brasileiras? Seja por qual motivo for, a origem da confeitaria nacional é, antes de tudo, antropológica, histórica, elucidativa.
Vencidas estas páginas, não se furte: cerre os olhos, evoque sua reminiscência mais significativa e tenha, certeza, um doce virá à mente como imagem marcante para tal sentimento.
Texto baseado de um Artigo originariamente publicado na revista Sabor do Brasil, MRE, 2004. Alexandre Menegale

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